O poeta que «se erguia cantando
no limbo dos seus versos»

<i>As florestas e os ventos,<br>de Papiniano Carlos</i>

Domingos Lobo

A história humana é a história/
de uma revolução contínua.

Papiniano Carlos, «A Memóriacom Passaporte»

Poeta, ficcionista, pedagogo, escritor de um dos períodos mais fecundos – e mais corajosos – do nosso neo-realismo, revelando-se em 1942 com o livro Esboço, Papiniano Carlos foi, sobretudo, enquanto poeta, um criador de atmosferas, de imagens sensitivas, um esteta e um escultor de rostos densos, povoados – um intransigente e solidário militante da palavra insubmissa.

Papiniano Carlos foi um contador de histórias, da História como memória transfigurada, mesmo quando o seu olhar dorido e arguto se debruçava sobre o nosso passado terrível e nele, nesse território desolado, uma Estrada Nova se abria à descoberta e ao sonho. Magoado olhar, digo, mas prenhe de uma sã jovialidade, da carga emotiva do poeta que acredita que do absurdo dos dias de raiva e de estupor outros tempos virão, limpos e erguidos; a esperança a ganhar-se por etapas, esperança que à esperança se atrela como na Menina e Moça de Bernardim Ribeiro.

A escrita de Papiniano Carlos, mormente a que superiormente produziu para os mais novos (e que nós, ao volver-nos meninos, de bibe e calção, sonhos no bornal, lemos como se, nesse espanto, descobríssemos nos esconsos da memória perenes sinais da infância longínqua, assim, pela pena mágica do poeta, recuperados); mesmo quando nos diz os dias amargos da exclusão e da clausura, dos medos caminheiros, dos soturnos ecos colectivos dessa noite enorme, é sempre uma escrita solar, lisa, plena de graça, de (in)sofrimento, como diria Ary, nela coexistindo a corajosa denúncia do terrível, da descida aos infernos, e o fantástico modo de efabular, de abordar as sombras que nos fecharam caminhos e mundos, maculando, durante décadas, a nossa paisagem social.

As Florestas e Os Ventos, livro publicado em 1952, a expensas do autor, é um desses livros. Livro que nos diz, com a serena sageza da razão, os dias da miséria, da fome e do silêncio. Livro que nos transporta, dessas lajes de frio, dessa terra da nossa mais humilhante sujeição e desamparo, até à consciência da luta e da resistência.

É da selva – hei-la nestas páginas, na sua crueza larvar – que trata este livro; o lado sórdido, vil que o fascismo foi, que se plasmou nas relações entre os poderes e o povo miúdo e eis, igualmente, a força, a obstinação que destrói diques, grilhetas, anos de medo e trevas, de esconjuros, de ventos e frios, aqui vertidos em poemas e contos de uma singular agudeza, que ainda hoje transportam os frémitos da revolta e inquietude desses dias de nojo e sobressalto: Quem nos virá pregar, a Nós, sujeição?/Ao largo, traficantes de paraísos celestes!/Aqui, na terra, está nossa grandeza!/Aqui, na terra, está nosso destino!/Venham os arados/Venham os arados! Até esse conto, O Pequeno Feixe de Raios, no qual a denúncia da opressão se diz clara e sem esconsos metafóricos. Por isso não é de estranhar que a PIDE o quisesse longe dos escaparates, perverso e subversivo livro que precisava ser destruído e silenciado como tantos outros o foram. Assim, e segundo as notas do ensaísta Bruno Monteiro, que acompanha esta nova edição, fac-similada a partir dos poucos originais que escaparam a senha persecutória da polícia fascista, no dia 23 de Setembro de 1953, três agentes da PIDE entram na sede da Sociedade Editora Norte (..), pedem os talões de remessa do livro As Florestas e os Ventos, conferem as existências e levam consigo todos os exemplares que encontram. Percorrem depois as livrarias e a tipografia em que o livro fora impresso e apreendem quase todos os exemplares que restam. Só uns quantos livros escapam à fúria dos algozes, guardados desde então como um tesouro de palavras, memória firme de um tempo resistente e corajoso – tempo de luta, de firmeza, que as palavras de Papiniano Carlos expressavam sem temor mas tocados, trombeta suspensa, de inabalável esperança: As trevas já não contam, é sofrê-las e vingá-las;/na montanha/já crescem as florestas e os ventos e os lírios, querida. E este livro, sonegado ao nosso convívio no tempo da sua gestação, não se perdeu – recusou-se ao silêncio.

Livro da memória que fomos resistindo, memória que se dá ao futuro nesse modo ágil de efabular, de se contar à lareira como se fora As Mil e Uma Noites do nosso descontentamento, sabendo, no entanto, que Uma gaivota guincha na manhã breve e que, de mãos dadas e serenos, a melodia futura dos sonhos ressoa algures no chão grado do nosso suor, e um dia de sol, de um Abril qualquer, desabrochará em canto colectivo.

O neo-realismo propôs-se, tanto na poesia como na prosa, ir ao encontro do país real, expurgá-lo, no seu esquivo corpo sensitivo e imagético, da ganga mentirosa, do ranço da retórica cínica e hipócrita em que o salazarismo o envolveu; denunciar, através da palavra e da arte em geral, a política do regime e estabelecer traços de solidariedade com o mundo dos oprimidos, dos excluídos, das massas anónimas e sem voz que o fascismo reduziu a uma existência larvar, à desumanização, à ignorância e ao temor do novo e do diferente. Uma literatura de acção, que tomava partido. Papiniano Carlos esteve sempre nessa trincheira da luta, assumindo a poesia desde Esboço, 1942; O Lutador, 1944; Poema da Fraternidade, 1945; Estrada Nova, 1946; Mãe Terra, 1948; e Uma Estrela Viaja na Cidade, 1958, e outros, como «prática política» no dizer de Joaquim Namorado. Poesia que emerge, pela força metafórica, pela natureza variável/das palavras (Carlos de Oliveira), por esse rumor do tempo futuro em que o verbo assenta, pela transposição crítica do real, pelas suas perenes ressonâncias (o amor, a amizade, a dádiva, a memória) que a configura, de modelos de prestígio e de inquestionável importância planetária que lhe são afins: Aragon, Alberti, Neruda, Nazim Ikhemet, Éluard, Nicolás Guillén, Maiakovski, etc..

Apesar do desnorte, da cupidez que campeia em grande parte do sector editorial indígena, existem, esparsos, cadinhos de oxigénio que nos alimentam e deixam respirar a plenos pulmões. A Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP), responsável pela presente edição de As Florestas e os Ventos, de Papiniano Carlos, é um desses casos.

Regresso, para terminar este apontamento, ao texto de Bruno Monteiro que acompanha esta edição do livro de Papiniano Carlos – livro que das trevas se ergueu, desde o dia em que os esbirros levaram o poeta/para de encontro às trevas o esmagarem, para encontrar finalmente a luz dos dias levantados: «Na sua comemoração, menos proclamada do que praticada, dos 40 anos da Revolução, a AJHLP procura somente mostrar que na construção de um país em liberdade resta sempre qualquer coisa a fazer. Voltar finalmente a imprimir a obra de Papiniano Carlos não é, por isso, um “lamento” sobre o passado: é, sim, a tentativa de superar positivamente, corrigindo-a como pudermos, a repressão do Estado Novo sobre a cultura portuguesa».

Propósito amplamente conseguido, portanto.




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